Carnaubal

Lucas Coelho Pereira

Mestre e doutorando em Antropologia pelo Programa Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (PPGAS/DAN/UnB),

Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Bolsista de doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

“Carnaúba é assim: dá em todo em canto”. Andando pelo Delta do Rio Parnaíba é difícil discordar disso. A carnaubeira faz-se presente nas portas e nos quintas das casas, na beira do rio, nas calçadas de prédios públicos, no meio fio de avenidas. Há quem a chame de “árvore da vida”, porque dela tudo se aproveita. Das raízes fazem remédios; com o caule, móveis, cercas, casas. As palhas são bastante apreciadas no artesanato de cestos, redes, tapetes e o que mais a criatividade permitir. Elas fornecem ainda matéria prima para a produção de velas, microchips, cera, cosméticos e produtos lubrificantes. Antes disso, obviamente, suas folhas precisam ser retiradas do alto de suas copas. É sobre este processo que irei narrar através de imagens.   

Apesar de amplamente presentes no semi-árido nordestino, é nos carnaubais onde encontramos várias delas. Juntas. Exuberantes! Medindo até 20 metros. Suas palhas são coletadas com o auxílio de uma foice. Na Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba (lugar onde o ensaio foi realizado) a organização para esta atividade ocorre em “turmas”. Grupos de pelo menos quatro homens que – desempenhando diferentes funções – coletam e preparam a folha da carnaúba para serem trituradas em máquinas. Somente assim se obtém o pó com o qual produtos derivados da planta serão confeccionados. Porém, se a máquina realiza uma das principais transformações técnicas (Sautchuk, 2017) implicadas nesta cadeia produtiva, é apenas através do manuseio da folha por mãos humanas que isso se torna possível. 

Lelía, Assis e Marcelo – personagens desta narrativa visual – trabalham com as mãos ao lidar com foices, facões e outros ferros. As mãos unem, separam, cortam, carregam, abrem as folhas. O que não significa dizer que todo o corpo não esteja envolvido na constituição dessas habilidades (Ingold, 2002). Acessar as carnaúbas requer caminhadas. Implica conhecimento profundo do próprio território e suas territorialidades (Godoi, 2016; Little, 2002) seu relevo, áreas alagadas, localização dos carnaubais. Saberes gestados a partir do engajamento prático das pessoas com seus ambientes e caminhos de vida (Ingold, 2002, 2015). Quem se aventura neste ofício joga ainda com o calor do sol, pois só depois de espalhadas ao chão para secar poderá ser extraído o pó das folhas. Além da descrição de gestos efetuados na coleta, portanto, o ensaio mostra o conjunto de paisagens, plantas e agentes mais-que-humanos (Tsing, 2019) nela envolvidos. As fotos são da “safra” de 2019.

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O trabalho começa antes do nascer do sol. Lélia me mostrava áreas que já estavam sendo trabalhadas por outras turmas. Há um (re)conhecimento tácito a respeito disso e deve-se observar muito bem as porções de carnaubal já “mexidas”. Caminhar também é, de algum modo, planejar a provável da rota de trabalho.
Legenda: Foto em preto e branco de um homem de costas usando chapéu de palha e vestindo camisa de mangas compridas. Ele está carregando uma bolsa ao lado esquerdo do corpo e um pequeno galão de plástico no ombro. Ao fundo, desfocado, é possível ver uma extensa vegetação rasteira de plantas arbustivas e algumas palmeiras de carnaúba espaçadas.

 

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Setembro e outubro são meses com forte ocorrência de ventanias no Delta do Parnaíba. O foiceiro precisa posicionar-se na direção contrária ao vento. Caso contrário as folhas podem lhe atingir ao cair. Um dos principais riscos do ofício.
Legenda: Foto em preto e branco de um homem segurando uma foice e cortando as palhas de uma palmeira de carnaúba bem alta. Ele está de pé, usando um chapéu de palha, camisa e calça compridas. O cabo da foi é longo e ele o segura usando as duas mãos, posicionando a direita logo acima da esquerda. Ao seu redor existe uma vegetação rasteira de juncos. No céu aparecem algumas nuvens e ao fundo é possível ver várias carnaúbas próximas umas das outras

 

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As folhas da carnaúba apresentam diferenças entre si. Aquelas já desenvolvidas e, portanto, abertas sãochamadas de “palha”. O pó delas obtido é vendido mais barato – cerca de nove reais o quilo. Quase metade do valor daquele processado a partir “olho” (que são folhas de carnaúba ainda em broto, fechadas,
situadas no cume da carnaubeira e consideradas de maior qualidade).
Legenda:  Foto em preto e branco do caule de uma carnaúba com folhas da palmeira caídas ao seu lado. O caule da carnaúba possui várias camadas que saltam para fora como se fosse pontas. As folhas são semi circulares e estão caídas sobre o capim.
 

 

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Cortar os pedúnculos é função do aparador. Um serviço considerado mais leve, mas nem por isso menos desgastante. Trabalha-se das primeiras horas da manhã até o pôr do sol. Como os personagens dessa narrativa residem na Resex e são parentes e amigos próximos, cada um faz uma breve pausa para o almoço em suas casas.
Legenda: Foto em preto branco das mãos de um rapaz segurando um facão e cortando o pedúnculo da folha da carnaúba. Ele usa um anel no dedo anelar da mão que segura o facão. Está vestindo  bermuda e uma jaqueta de tecido. Ao fundo há várias folhas de carnaúba entrelaçadas.

 

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Trabalhar no carnaubal requer um conjunto de ações coordenadas. O foiceiro é seguido pelo aparador que, por sua vez, é acompanhado pelo feixeiro. À medida que o dia avança fechar as palhas é preciso, caso contrário elas podem perder muito pó antes mesmo de serem postas para secar.
Legenda: Foto em preto e branco das mãos de um homem amarrando uma palha de carnaúba. Ele segura a folha com as duas mãos na altura da cintura e faz uma espécie de nó na própria folha de modo a deixá-la fechada. O homem está vestindo calça e camisas de manga compridas. 

 

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Além de fechar as palhas é função do feixeiro organizá-las em feixes, como o próprio nome da função indica. Somente assim elas poderão ser transportadas. As carnaúbas crescem dispersas e caminha-se muito no carnaubal até chegar onde a turma irá amontoá-las.
Legenda:Foto em preto e branco das mãos de um homem juntando várias palhas de carnaúba. Ele amarra-as em um único feixe de folhas. As folhas são colocadas juntas com o auxílio de uma palha que atravessa todas elas. O homem está de calça comprida e botas.O enquadramento mostra toda a parte do seu corpo da cintura para baixo.

 

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“Se tivesse um jumento aqui, rapaz, a gente tinha derrubado mais palha”.
Sem ajuda animal meus anfitriões carregam as folhas por longas distâncias. Nas costas. Em virtude disso evita-se lidar com carnaúbas muito longe de casa, a não ser que se esteja disposto a agüentar o pique (ou se extenuar de cansaço).
Legenda: Foto em preto e branco de um homem coberto de palhas de carnaúba. Ele carrega as folhas penduradas no ombro. Está usando um pequeno chapéu de tecido e calças compridas.

 

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A labuta nos carnaubais é uma atividade temporária. Ocorre em meados do verão que, pelas bandas do Delta, compreende os meses de julho a início de dezembro. Com o inverno e o “subir das águas”, as palmeiras pouco a pouco recuperam sua folhagem.
Legenda: Foto em preto e branco das carnaúbas sem folhas. As árvores estão ao lado de um pequeno curso d’água e dois cachorros caminham à sua margem.